Lady Casca reclamava dos joelhos todos os dias e raramente descia os quatro degraus para atender quem batia à porta. Sabia que era o vizinho, o qual falava mal nos jantares. O velho, de 96, estava disposto a irritá-la com o excesso de tranquilidade. Oferecia as verduras recém-colhidas do quintal com o pretexto de bisbilhotar as jovens hóspedes de Lady. Dia desses, ela esbravejou quando viu a carta que o quase-centenário deixou para uma delas: vem pescar comigo, com as letras turvas da tinta da velha máquina. Sabe-se lá se a reação era proteção das moças ou ciúme. Inglesa, de Londres, Lady colecionava manias: não tocar na parede, falar do passado, ter frequentes mudanças de humor e montar a mesa das refeições com perfeição. A voz alta e firme era, quase sempre, confundida com gritos -- recebidos por quem não a entendia. As bochechas coravam quando cozinhava ou sorria e o tipo físico lembrava a versão feminina do Papai Noel. Em segundos, doce. Em segundos, amarga. E mais amarga quando deixavam os mosquitos entrarem pela porta da varanda. Ela repetia as normas da casa infinitamente aos estudantes estrangeiros que recebia para temporada de estudos. Ganhava por isso e era a oportunidade de exibir o dom da culinária, receber elogios e colocar a máscara. Fingia ser a madrasta de jovens que não envelheciam. A filha biológica pintou as madeixas de vermelho e deu no pé com o namorado. O pai morreu quando era criança, a mãe se foi há pouco e os irmãos tiveram sucesso na venda de leite bovino. Sobrou o quadro no corredor estreito que dá na cozinha: Lady, aos 19, com cabelos negros, sorriso discreto, abraçada à família. Os mesmos olhos se fixavam na imagem 45 anos depois. Fazia isso, desmascarada, enquanto os intercambistas dormiam. Explorava a internet depois e, resistente, ia para a cama no meio da madrugada. Disse que teve muitos amores, mas não havia companhia na mega plus queen king size. E disse um tanto mais, mas as taiwanesas não entenderam bulhufas. Vá lá um suspiro e o meio-dia a esperava... com mais escadas e o toque do velho tarado na campainha da casa 46.
Mais uma mulher de fases...
ResponderExcluirExcelente. Pra ler num fôlego só. Sem pontos nem parágrafos....
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