29.9.14

Masks

Deitei no seu sofá e passei a olhar a janela como nunca antes. A grade e a cortina formam um grafismo charmoso na paisagem. Mas é o que tem lá fora que me atrai. Sua árvore está florida e no cantinho esquerdo, uma estrela brilha forte. Não quero ir para a cama. É estranho sem você. Meu conforto é quase como seus poemas, pacificadores de alma. E minha coerência, um desatino. Deitei no seu sofá e passei a me olhar como nunca antes. A paisagem é formada por uma estrela forte e uma agitação da alma. Isso tudo, sem você, é um completo desatino.

24.4.14

Ms. Ax

Meia-noite e ela completa 24 anos. Recebe os primeiros abraços, ainda em choque. O tempo zombou daquela cara branca e voou. Está upset, sem mais.



Ms. Ax não guarda qualquer lembrança da época antes dos 6 anos. Tenta montar alguma cena na cabeça por fotos ou filmagens tremidas, mas soa falso. Depois disso, a memória coleciona histórias, mais alheias do que dela. Pode contar nos dedos: um amor de infância, duas viagens, algumas flores e... peraí, não consegue se lembrar de nada (de novo). Vive em uma crise existencial constante, como se ainda fosse a menininha deitada no divã aos 11. "Pra quê aprender tudo isso se a gente morre?"

Ms. Ax quer que a noite se prolongue um pouco mais, a coberta esteja com cheiro de amaciante e que um cotonete fique sempre por perto. Há muito, sustenta o hábito de tomar banho quente e, em seguida, pentear o cabelo para trás -- do mesmo jeito que a avó fazia. Pijama é tradição e cara limpa no reflexo do espelho também. Boa comida, boa bebida, como uma boa taurina.

Ms. Ax gosta da incoerência de textos e subverter o sistema e as palavras. É uma fraude. Disso, inclusive, é a única certeza que lhe ronda. Grita e esperneia para ser diferente, mas no fundo (e nem precisa cavar muito) só quer deitar em uma rede e deixar o pau quebrar. Ela quer começar uma prosa com aspas, fazer as pazes com o gerúndio, abusar das reticências e arrancar do peito a marca do "não pode". Trabalha menos, lê menos, sorri menos do que pensam.

Ms. Ax sonha quase todos os dias com o mar. Raros são os sonhos que consegue chegar até ele. Na verdade, é a água que a persegue em sonho. Cachoeira, rio, piscina, praia... Estão por lá, esperando o toque da moça. Participa de outro mundo quando dorme e essa aventura de toda noite é desgastante devido as crises de sonambulismo. Estão explicadas as olheiras.

Ms. Ax pensa que seu nome verdadeiro é Ana. De algum jeito, aqui ou no Além, Ana. Os pensamentos se misturam e teme/deseja a insanidade. Quer abandonar os óculos, a cera quente, a balança, o volante, os documentos. Quer acreditar que, por trás de tanta máscara e fantasia, haja um pouquinho de verdade sobre si. Neste ano, ela pede verdade e memória de presente. Um tanto mais de sono tranquilo não lhe faria mal.

Ms. Ax... Ms. Ax.

18.4.14

Mess

Mess logo me avisou que o objetivo era encontrar o amor.


Assim foi feito. Rendeu-se ao calor de um mexicano picareta e arriscou raríssimas palavras em espanhol. Ficamos surpresas quando a madame chinesa nos ofereceu o melhor quarto da mansão por um preço razoável. Ficávamos no topo: com pia, geladeira, microondas, mesa, sofá, camas enormes e uma tv estragada. Ela pegou a janela. Eu, o escuro. Ela cozinha. Eu, limpo. Foi me receber com um prato de arroz (sempre arroz), ovo e um coração de ketchup. Tempo de gentilezas. Mess fazia do lado dela do quarto uma bagunça e cozinhava com poucas noções de higiene. O segredo, inclusive, das receitas era a minha fome aliada ao molho shoyo. Ela queria o amor. Nunca disse “eu te amo” e a possibilidade lhe dava arrepios. Todos os dias de manhã coloca os cílios postiços, a meia calça, a chapa no cabelo, aceitava a torrada com manteiga e tomava aquele chá. Eu pensei que pudesse encontrar uma grande amiga, mas nossas buscas eram diferentes. Muita simpatia, mas toda convivência um dia pega no calo. Do meio para o final, eu me sentia sozinha, Mess passava dias sem aparecer. Eu, cozinho. Eu, limpo. Ela encontrou um cara e a cama dele, estava tão feliz. O moço adiantou que de sério nada queria, estava decepcionada. Era uma moleca perdida, de riso fácil, emotiva, que experimentava as chances de amar. Rebelou-se contra a chinesa, nossa cozinha, a claridade da janela e o próprio coração. Despediu-se de mim em um dia de neve e ficou lá, em pé, até eu dobrar a esquina. Era a hora de Mess tomar o resto de chá e planejar a próxima mudança, de casa, cama e amor.

19.2.14

Sean

Ninguém decifrava aqueles olhos. Até aparecer uma garota tão estranha como ele.


Lembro bem do dia em que cheguei à mansão. Mala, cuia e pouco papo. A madeira cheirava à velhice, tinha lá seus 50 anos — apesar dos 35 jovens moradores da casa. Sean levantou do sofá rasgado e sacudiu minhas mãos com o sorriso mais simpático de que tenho conhecimento. Eu e meu machismo concluímos que era estranho um homem tão bonito sem rastro de namorada ou vuco-vuco se quer. Ele aparecia quando eu estudava na sala de piano. Eu, de pijama. Conversávamos horas: os pais moram em outra cidade, a irmã depressiva, e ele se metendo com arqueologia em novos ares. Muita maconha na adolescência e agora nem um pingo de champagne em comemorações. Todas as garotas se perguntavam se ele era mesmo perfeito. Algo estava errado com a perfeição de alguém.  Escolhemos um dia para caminhar até a praia, 10 minutos de exercício. Esplendorosa seria o adjetivo ideal para descrever a paisagem. Era estranho, ele e tudo. Era praia e não estava calor. Era, era. Havia tocos de árvore que serviam se assento improvisado, mas preferimos deitar nas pedras. Sem rastro de areia, só pedras. Foi o céu mais azul de todos —exceto o de Brasília. Sean e eu ouvimos o barulho do mar por minutos em silêncio. O som da onda que escorregava nas pedras... Vai e vem, como em uma música celeste. Eu fazia perguntas sem parar em um inglês ruim. E ele respondia sempre depois de me corrigir na gramática. Sobre a vida, o futuro, os estudos, os filósofos, o mar, a morte e a existência de Deus. Ele ria quando eu o chamava de monstro por não acreditar um segundinho em alma. Hora de ir. Compramos alguns cereais e seguimos para nossas outras vidas. Frankstein, uma de suas obras preferidas, passou semanas em minha cabeceira. Tive medo de ler, sabia que encontraria muitas semelhanças entre o personagem e meu amigo. E, no fundo, não queria conhecê-lo por inteiro. Bom assim: no limbo entre as pedras e a água. Diferentes, que se fundem e formam o que eu quiser.

5.2.14

Lady Casca

Ela odeia quem abre a porta da varanda, os mosquitos e o ódio.


Lady Casca reclamava dos joelhos todos os dias e raramente descia os quatro degraus para atender quem batia à porta. Sabia que era o vizinho, o qual falava mal nos jantares. O velho, de 96, estava disposto a irritá-la com o excesso de tranquilidade. Oferecia as verduras recém-colhidas do quintal com o pretexto de bisbilhotar as jovens hóspedes de Lady. Dia desses, ela esbravejou quando viu a carta que o quase-centenário deixou para uma delas: vem pescar comigo, com as letras turvas da tinta da velha máquina. Sabe-se lá se a reação era proteção das moças ou ciúme. Inglesa, de Londres, Lady colecionava manias: não tocar na parede, falar do passado, ter frequentes mudanças de humor e montar a mesa das refeições com perfeição. A voz alta e firme era, quase sempre, confundida com gritos -- recebidos por quem não a entendia. As bochechas coravam quando cozinhava ou sorria e o tipo físico lembrava a versão feminina do Papai Noel. Em segundos, doce. Em segundos, amarga. E mais amarga quando deixavam os mosquitos entrarem pela porta da varanda. Ela repetia as normas da casa infinitamente aos estudantes estrangeiros que recebia para temporada de estudos. Ganhava por isso e era a oportunidade de exibir o dom da culinária, receber elogios e colocar a máscara. Fingia ser a madrasta de jovens que não envelheciam. A filha biológica pintou as madeixas de vermelho e deu no pé com o namorado. O pai morreu quando era criança, a mãe se foi há pouco e os irmãos tiveram sucesso na venda de leite bovino. Sobrou o quadro no corredor estreito que dá na cozinha: Lady, aos 19, com cabelos negros, sorriso discreto, abraçada à família. Os mesmos olhos se fixavam na imagem 45 anos depois. Fazia isso, desmascarada, enquanto os intercambistas dormiam. Explorava a internet depois e, resistente, ia para a cama no meio da madrugada. Disse que teve muitos amores, mas não havia companhia na mega plus queen king size. E disse um tanto mais, mas as taiwanesas não entenderam bulhufas. Vá lá um suspiro e o meio-dia a esperava... com mais escadas e o toque do velho tarado na campainha da casa 46.