19.2.14

Sean

Ninguém decifrava aqueles olhos. Até aparecer uma garota tão estranha como ele.


Lembro bem do dia em que cheguei à mansão. Mala, cuia e pouco papo. A madeira cheirava à velhice, tinha lá seus 50 anos — apesar dos 35 jovens moradores da casa. Sean levantou do sofá rasgado e sacudiu minhas mãos com o sorriso mais simpático de que tenho conhecimento. Eu e meu machismo concluímos que era estranho um homem tão bonito sem rastro de namorada ou vuco-vuco se quer. Ele aparecia quando eu estudava na sala de piano. Eu, de pijama. Conversávamos horas: os pais moram em outra cidade, a irmã depressiva, e ele se metendo com arqueologia em novos ares. Muita maconha na adolescência e agora nem um pingo de champagne em comemorações. Todas as garotas se perguntavam se ele era mesmo perfeito. Algo estava errado com a perfeição de alguém.  Escolhemos um dia para caminhar até a praia, 10 minutos de exercício. Esplendorosa seria o adjetivo ideal para descrever a paisagem. Era estranho, ele e tudo. Era praia e não estava calor. Era, era. Havia tocos de árvore que serviam se assento improvisado, mas preferimos deitar nas pedras. Sem rastro de areia, só pedras. Foi o céu mais azul de todos —exceto o de Brasília. Sean e eu ouvimos o barulho do mar por minutos em silêncio. O som da onda que escorregava nas pedras... Vai e vem, como em uma música celeste. Eu fazia perguntas sem parar em um inglês ruim. E ele respondia sempre depois de me corrigir na gramática. Sobre a vida, o futuro, os estudos, os filósofos, o mar, a morte e a existência de Deus. Ele ria quando eu o chamava de monstro por não acreditar um segundinho em alma. Hora de ir. Compramos alguns cereais e seguimos para nossas outras vidas. Frankstein, uma de suas obras preferidas, passou semanas em minha cabeceira. Tive medo de ler, sabia que encontraria muitas semelhanças entre o personagem e meu amigo. E, no fundo, não queria conhecê-lo por inteiro. Bom assim: no limbo entre as pedras e a água. Diferentes, que se fundem e formam o que eu quiser.

5.2.14

Lady Casca

Ela odeia quem abre a porta da varanda, os mosquitos e o ódio.


Lady Casca reclamava dos joelhos todos os dias e raramente descia os quatro degraus para atender quem batia à porta. Sabia que era o vizinho, o qual falava mal nos jantares. O velho, de 96, estava disposto a irritá-la com o excesso de tranquilidade. Oferecia as verduras recém-colhidas do quintal com o pretexto de bisbilhotar as jovens hóspedes de Lady. Dia desses, ela esbravejou quando viu a carta que o quase-centenário deixou para uma delas: vem pescar comigo, com as letras turvas da tinta da velha máquina. Sabe-se lá se a reação era proteção das moças ou ciúme. Inglesa, de Londres, Lady colecionava manias: não tocar na parede, falar do passado, ter frequentes mudanças de humor e montar a mesa das refeições com perfeição. A voz alta e firme era, quase sempre, confundida com gritos -- recebidos por quem não a entendia. As bochechas coravam quando cozinhava ou sorria e o tipo físico lembrava a versão feminina do Papai Noel. Em segundos, doce. Em segundos, amarga. E mais amarga quando deixavam os mosquitos entrarem pela porta da varanda. Ela repetia as normas da casa infinitamente aos estudantes estrangeiros que recebia para temporada de estudos. Ganhava por isso e era a oportunidade de exibir o dom da culinária, receber elogios e colocar a máscara. Fingia ser a madrasta de jovens que não envelheciam. A filha biológica pintou as madeixas de vermelho e deu no pé com o namorado. O pai morreu quando era criança, a mãe se foi há pouco e os irmãos tiveram sucesso na venda de leite bovino. Sobrou o quadro no corredor estreito que dá na cozinha: Lady, aos 19, com cabelos negros, sorriso discreto, abraçada à família. Os mesmos olhos se fixavam na imagem 45 anos depois. Fazia isso, desmascarada, enquanto os intercambistas dormiam. Explorava a internet depois e, resistente, ia para a cama no meio da madrugada. Disse que teve muitos amores, mas não havia companhia na mega plus queen king size. E disse um tanto mais, mas as taiwanesas não entenderam bulhufas. Vá lá um suspiro e o meio-dia a esperava... com mais escadas e o toque do velho tarado na campainha da casa 46.