Ninguém decifrava aqueles olhos. Até aparecer uma garota tão estranha como ele.
Lembro bem do dia em que cheguei à mansão. Mala, cuia e pouco papo. A madeira cheirava à velhice, tinha lá seus 50 anos — apesar dos 35 jovens moradores da casa. Sean levantou do sofá rasgado e sacudiu minhas mãos com o sorriso mais simpático de que tenho conhecimento. Eu e meu machismo concluímos que era estranho um homem tão bonito sem rastro de namorada ou vuco-vuco se quer. Ele aparecia quando eu estudava na sala de piano. Eu, de pijama. Conversávamos horas: os pais moram em outra cidade, a irmã depressiva, e ele se metendo com arqueologia em novos ares. Muita maconha na adolescência e agora nem um pingo de champagne em comemorações. Todas as garotas se perguntavam se ele era mesmo perfeito. Algo estava errado com a perfeição de alguém. Escolhemos um dia para caminhar até a praia, 10 minutos de exercício. Esplendorosa seria o adjetivo ideal para descrever a paisagem. Era estranho, ele e tudo. Era praia e não estava calor. Era, era. Havia tocos de árvore que serviam se assento improvisado, mas preferimos deitar nas pedras. Sem rastro de areia, só pedras. Foi o céu mais azul de todos —exceto o de Brasília. Sean e eu ouvimos o barulho do mar por minutos em silêncio. O som da onda que escorregava nas pedras... Vai e vem, como em uma música celeste. Eu fazia perguntas sem parar em um inglês ruim. E ele respondia sempre depois de me corrigir na gramática. Sobre a vida, o futuro, os estudos, os filósofos, o mar, a morte e a existência de Deus. Ele ria quando eu o chamava de monstro por não acreditar um segundinho em alma. Hora de ir. Compramos alguns cereais e seguimos para nossas outras vidas. Frankstein, uma de suas obras preferidas, passou semanas em minha cabeceira. Tive medo de ler, sabia que encontraria muitas semelhanças entre o personagem e meu amigo. E, no fundo, não queria conhecê-lo por inteiro. Bom assim: no limbo entre as pedras e a água. Diferentes, que se fundem e formam o que eu quiser.